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O barulho das gotas d'água caindo no chão era calmante para Scarde. Ela adorava quando chovia, pois normalmente podia observar os pingos batendo contra o vidro da janela do local — sendo esse, na maioria das vezes, em sua casa — no qual estava.
Infelizmente, naquele momento, ela não poderia apreciar nem o som melodioso da chuva ou o vento refrescante que ela trazia consigo. Afinal, havia acabado de sair de uma aula teórica pesada da faculdade e tudo o que mais desejava era estar em casa, descansando enquanto apreciava uma caneca doce de chá.
E também existia outro problema…
— Seri? — A voz profunda e tranquila de sua amiga fez com que Serdin desviasse seus olhos da paisagem para a mulher que estava ao seu lado. — Não vai para casa?
Um sorriso envergonhado ergueu levemente os cantos dos lábios de Scarde, porém ela nada respondeu. Sentiu suas batidas cardíacas acelerarem um pouco, algo normal de acontecer sempre que percebia que estava mais próxima da outra do que imaginava.
— Não vai me dizer que esqueceu de trazer o guarda-chuva. De novo. — Sua amiga disse, para depois soltar um suspiro desanimado. Não era como se Esnar não estivesse acostumada com o fato de Serdin ser levemente avoada, ainda assim, parecia que ela sempre se surpreendia quando era relembrada desse detalhe.
— Eu deixei na outra bolsa… — Foi o único argumento que Scarde usou para se defender, voltando suas íris azul-esverdeadas para as gotas caindo no pátio à sua frente.
Kanavan apenas balançou a cabeça em negação, parecendo não acreditar no que tinha escutado. Um sorriso suave e carinhoso dominava os lábios dela, todavia a outra não havia reparado, ocupada demais observando a chuva molhando o chão, prédios, árvores e alguns desavisados.
— Eu posso dividir o meu com você.
Serdin sentiu seu rosto se aquecer, a simples ideia de andar embaixo do mesmo guarda-chuva que Esnar a deixava nervosa o suficiente para fazer seus dedos tremerem levemente.
— Não teria problema? — Scarde questionou, tentando soar o mais calma que podia enquanto segurava a borda das mangas do casaco. Era uma forma sutil de esconder o estado trêmulo atual de suas mãos, e a deixava sentindo-se um pouco mais segura de si. — Achei que você ia passar na papelaria antes de ir para casa.
— Não vale a pena sair com esse tempo. — Kanavan colocou uma das mãos na cintura, já que a outra segurava seu guarda-chuva fechado, enquanto encarava o céu com um olhar desgostoso. Até onde Serdin se lembrava, sua amiga nunca tivera muito carinho pelo clima mais frio e chuvoso.
Esnar, assim como seu cabelo curto dourado e olhos rubros, era uma pessoa que preferia o tempo mais quente e iluminado. Um sol brilhante e um calor mediano era o tipo de clima favorito dela, que adorava treinar esgrima no pátio da sua academia e fazer piqueniques no gramado da pracinha perto de sua casa.
Logo, ela falar aquilo não tinha sido nenhuma surpresa para Scarde.
— Se não vou te atrapalhar… então eu aceito a oferta — ela disse, com uma certa timidez agarrada em seu tom de voz. Seu rosto, porém, mostrava um sorriso agradecido e feliz em seus lábios.
Uma visão que fez Kanavan virar o rosto para o outro lado, a fim de esconder o tom rosado que dominava suas bochechas.
— Bem, então o que estamos esperando? — Esnar falou, enquanto abria o guarda-chuva que estava em sua mão com a intenção de enfatizar sua questão.
Com uma expressão tranquila no rosto, ela deu um passo à frente e estendeu o objeto acima de sua cabeça, enquanto oferecia o braço livre para Serdin segurar.
Sua amiga não perdeu tempo antes de agarrar, com cuidado, a manga do casaco dela e se pôr também embaixo do guarda-chuva.
Elas logo começaram a andar, lentamente, tendo apenas o barulho das gotas d'água caindo sob o tecido do objeto e do chão como música de fundo.
Kanavan sentia-se confortável em ter a outra por perto, mesmo que não gostasse nem um pouco de andar no chão molhado. Era um pouco difícil de manter o cabo reto para não deixar nenhuma delas à mercê da chuva enquanto tentava desviar das poças no chão, e ainda assim, Esnar tentava o fazer sem reclamar.
Ela sabia que Serdin adorava esse tipo de tempo, e embora não conseguisse compreender, ver o sorriso relaxado nos lábios da outra lhe deixava com o coração aquecido.
Já fazia um tempo que ela estava consciente do que sentia. No entanto, ainda estava tentando compreender suas emoções, já que tinha medo de estar confundindo o tamanho de seu afeto pela outra por amor e acabar iludindo-se com algo que não era real.
Kanavan gostava de ter certeza do que estava fazendo antes de ir fundo atrás de seus objetivos, por isso tinha decidido não falar nada para a outra no momento. Até porque, ela não sabia se seria correspondida.
E seria ainda pior se ela falasse algo e Serdin sentisse o mesmo. Pois no caso, não seria só com seus sentimentos que estaria brincando — mas com os de Seri também.
Uma risadinha ao seu lado foi o suficiente para trazer arrepios nos braços de Esnar, que embora tenha sentido o rosto esquentar, apenas franziu as sobrancelhas e olhou de lado para a amiga.
— O que foi? — Sua voz se manteve tranquila e firme, o que a deixou satisfeita com a forma com que falou. Ainda assim, seu coração teimava em falhar batidas só de perceber o quão próximas estavam embaixo daquele guarda-chuva.
— É que me lembrei de um filme — Serdin comentou, parecendo meio distraída ao que continuava olhando em frente. — Aquele que vimos juntas semana passada.
Kanavan vagamente se recordava do que sua amiga dizia. Afinal, não tinha gostado muito do longa, pois romance não era lá seu gênero favorito. Todavia, aquele filme que havia visto com Seri até que tinha sido divertido.
— Oh, aquele em que o casal principal divide o guarda-chuva na cena de confissão?
— Esse mesmo! — Scarde exclamou, de forma animada, batendo uma palma de sua mão na outra sem soltar o braço de Esnar.
— É uma trope comum de filmes românticos, se não me engano — Kanavan comentou pensativa, colocando a mão livre dentro do bolso da calça que usava. — A da confissão do casal no meio da chuva.
— Sim, é verdade. Acho tão romântico! — Serdin suspirou de forma apaixonada, apoiando a cabeça no ombro da outra. — Bem que podia ser a gente…
Esnar subitamente parou de andar ao ouvir aquilo, sentindo o coração acelerar dentro do peito enquanto o rosto ficava cada vez mais quente a cada segundo. Scarde, que estava dando um passo, acabou sendo puxada para trás pela imobilidade da amiga, se desequilibrando no processo.
Embora Kanavan sentisse que estava uma bagunça no momento, ela não pensou duas vezes antes de largar o guarda-chuva e segurar a outra. Ao estabilizar Serdin, ela percebeu o olhar confuso e assustado no rosto da amiga.
— Desculpa — Esnar disse, com a voz trêmula. Ela nem sentia os pingos d'água caindo em si, mesmo que estivesse os vendo cair no rosto da mulher à sua frente. — Não era minha intenção fazer você cair.
As íris azul-esverdeadas se suavizaram, e um pequeno sorriso surgiu em seus lábios.
— Tudo bem, eu entendo. — Scarde pegou uma mecha de seu cabelo, que era da mesma cor que seus olhos, e ficou brincando com os fios. — Eu te assustei, não foi?
Kanavan colocou uma mão na frente de sua boca, desviando os olhos da amiga. Mesmo que tentasse esconder o vermelho de suas bochechas, era óbvio que ela estava corando.
— Um pouco… — Esnar admitiu, num tom fraco. Ao voltar suas orbes rubras para a outra, ela viu a expressão triste, porém compreensiva, de Serdin. — Mas não é como se fosse algo ruim.
Scarde arregalou os olhos ao escutar aquilo. Ela abriu sua boca, como se quisesse falar alguma coisa, todavia nada saiu de si.
— Eu só não esperava ouvir você falar de forma tão direta… — Kanavan comentou, levemente envergonhada. — Não tinha pensando ainda na possibilidade de você gostar de mim assim.
Sua amiga apenas soltou uma risadinha novamente.
— Difícil não me apaixonar por alguém tão incrível e maravilhosa quanto você, Nar. — A forma como Serdin havia dito aquelas palavras, com tanto carinho e amor, tinha feito Esnar sentir seus batimentos acelerarem.
De alguma forma, ela achou que seus pulmões não estavam mais se enchendo de ar após escutar aquilo. Foi apenas quando ela sentiu um toque macio e quente em seus dedos que percebeu que realmente havia parado de respirar.
— Nar, está tudo bem?
Após piscar algumas vezes, Kanavan percebeu que sua visão não estava borrada por causa da chuva.
— Tá sim. — Foi tudo o que ela conseguiu soltar por entre seus lábios trêmulos.
Esnar usou a mão livre para limpar os olhos, e respirou fundo. Sentia um pequeno aperto encorajador na sua outra, e apenas aquele pequeno gesto fez com que o aperto em seu peito diminuísse.
— Sinto muito, Seri — Kanavan começou a dizer, num tom triste e amargo. — Não posso dizer que sinto o mesmo.
Ela viu os olhos de Serdin brilharem com as lágrimas acumuladas ali. Levou a sua mão livre para as semelhantes, de forma que estivesse com a de Scarde entre as suas em um aperto seguro.
— Mas também não posso afirmar que não sinto nada por você.
Sua amiga franziu as sobrancelhas, confusa com o que Esnar tentava dizer.
— O quê…?
— Eu não sei se me apaixonei por você — Kanavan disse, sentindo suas bochechas esquentarem. Ela sentia as gotas d'água fria caindo em seu rosto, todavia nem isso era o suficiente para interromper ela no momento. — Tenho medo de estar confundindo o que eu sinto e acabar iludindo a gente, Seri.
— Nar… — A voz de Serdin tinha um certo tom de dor, todavia a expressão facial dela se suavizou, mostrando compreensão na forma como seus lábios se ergueram levemente num sorriso tenso. — Não fique assim, você não fez nada de errado. Não tem motivo para se desculpar.
Ela levou sua mão esquerda, a qual não estava sendo segurada por Esnar, ao rosto da amiga. Seu polegar fez um leve carinho na bochecha morna, retirando os resquícios de pingos de água que estavam na pele dela.
— Não é como se só porque te contei como me sinto que deveríamos começar a namorar agora — Scarde falou, usando seu tom de voz mais tranquilo e gentil que tinha. Ela viu como Kanavan inclinou a cabeça, apreciando o contato e o carinho que sua palma fazia no rosto dela.
— Até porque, o importante pra mim é ter você do meu lado, independente do tipo de relacionamento que a gente tenha — a jovem disse, também inclinando levemente sua cabeça. Seus olhos estavam fechados enquanto ela exibia um dos seus mais belos sorrisos, parecendo satisfeita apenas em compartilhar aquele momento com a outra.
Embora o coração de Esnar estivesse palpitando e ela começasse a sentir suas palmas suando, ela não disse nada. Tudo o que fez foi soltar a mão da outra e se afastar, fazendo com que Serdin abrisse os olhos em confusão.
— Nar?
Ela viu a amiga pegar o guarda-chuva, até então esquecido, do chão e o pôr novamente sobre elas. Como não estava chovendo forte, não tinham se molhado o suficiente para a roupa começar a incomodar. Por isso, ela tinha até esquecido que estava tendo uma conversa tão pessoal com a outra em uma área aberta.
Não que esse pequeno detalhe fosse importante no momento.
— Eu falei alguma coisa– — Scarde sequer conseguiu terminar de falar, pois Kanavan não esperou para ter sua vez.
— E se eu não quiser ser só sua amiga também? — A voz dela estava firme e controlada. Suas íris rubras brilhavam intensamente, mostrando toda a emoção que sentia e não tinha posto em suas palavras. — E se eu quiser saber, afinal, o que sinto por você?
Serdin ofegou, surpresa. Suas mãos tremiam, e ela sentia que seu peito estava explodindo com toda a força que seu coração fazia ao bater.
— A gente pode ir devagar — ela respondeu, sem nem ao menos pensar antes de falar. Seus dedos se agarraram às mangas do casaco que usava, tentando manter controle sobre si própria. — Ir testando, ver o quão próximas podemos ficar sem criar muitas expectativas de que vai dar certo ou pressionar a outra.
Scarde se aproximou de Esnar, ficando perto o suficiente para sentir a respiração quente da outra no seu rosto, porém não o suficiente para encostar na mão que segurava o cabo do guarda-chuva.
— Se você quiser, podemos ir descobrindo o que você sente sem pôr nenhum rótulo no nosso relacionamento. Não precisamos deixar de ser amigas — Serdin explicou, de forma calma e sincera. —, mas também não precisamos nos transformar em algo a mais nesse exato momento.
Um sorriso confiante e animado se esticou nos lábios de Kanavan. Era o mesmo que ela exibia sempre que ganhava uma competição de esgrima, aquele que nunca falhava em trazer um arrepio a seus braços.
— Eu adoraria tentar.
Novamente, Esnar ofereceu seu braço livre para a amiga segurar. Serdin não perdeu tempo, logo estava novamente agarrada na outra enquanto sentia seu estômago revirando. Estava feliz e ansiosa para as possibilidades que Kanavan estava lhe dando. Aproveitando-se da proximidade, ela levantou a ponta dos pés e, bem no cantinho dos lábios da outra, deixou um leve e singelo selo ali.
Scarde não viu, pois tinha fechado os olhos, todavia Esnar havia engolido a saliva que se acumulou em sua boca. Ela havia ficado levemente desapontada — e ao mesmo tempo havia sentido seu peito se aquecer — com o beijo na bochecha que havia recebido.
Embora a mistura de emoções dentro de Kanavan fosse confusa, seus lábios se ergueram num sorriso bobo. Essa reação automática que havia tido a fez pensar que, talvez, não demoraria muito para confirmassem o que ela realmente sentia por Serdin.
— Então, Nar, por que não marcamos de ver outro filme esse final de semana?
— Só aceito se você me deixar escolher dessa vez.
Scarde a olhou, feliz e inclinou a cabeça novamente em seu ombro enquanto continuavam a caminhada até a casa dela. O barulho das gotas batendo no guarda-chuva era relaxante, embora o vento fresco que passava entre elas fosse um lembrete do porquê já deveriam estar em casa.
Ainda assim, elas não tinham pressa. O importante naquele momento era aproveitar a companhia da outra enquanto conversavam sobre os vários caminhos que o relacionamento delas poderia seguir.
O resultado daquela conversa não importava desde que elas continuassem juntas.