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O tom púrpuro que coloria o céu mostrava que já estava tarde. Cintilando lá no alto, ainda que levemente escondidas, as estrelas deixavam seu brilho prateado guiar aqueles que estavam perdidos pela floresta. A lua, principal e grande atriz daquele palco, se encontrava escondida por entre as espessas nuvens de tempestade.
Em conclusão, aquela noite poderia ser um grande pé no saco.
— Misaki-chan? — Suas orelhas lupinas tremerem brevemente, prestando atenção na voz doce e suave que havia a chamado. Pelo tom indeciso, nem mesmo a outra parecia saber se deveria tentar falar consigo naquele momento.
Íris acinzentadas deslizaram pelo vidro da janela, retirando o foco da vista do céu para observar atentamente a mulher ao seu lado. Ela teve que erguer um pouco o queixo para poder analisar a expressão hesitante de Kanon. A forma como a humana mordia o lábio inferior deixava óbvio a preocupação que estava sentido.
A jovem bruxa se encontrava em pé, estagnada no canto da sala — que era perto da janela, onde a lobisomem se encontrava sentada num banquinho de madeira — enquanto contorcia seus dedos das mãos de forma ansiosa. Da forma como se comportava, nem parecia que ela era a verdadeira dona da casa onde estavam.
Sabendo que pressioná-la não ajudaria a situação, a Okusawa resolveu esperar que ela encontrasse uma forma de dizer o que estava pensando. Mesmo que o sonzinho de sininhos badalando estivesse começando a incomodar os seus ouvidos sensíveis. Era irritante, todavia era mais fácil esperar a conversa fluir tranquilamente do que conseguir fazer Kokoro ficar quieta.
E, com a Tsurumaki sentada no ombro direito da Matsubara, nem mesmo a possibilidade de distraí-la com algo em outro cômodo da casa estava disponível no momento. Não que a pequena fae fosse entender o que a Misaki diria, caso tentasse.
A polegarzinha parecia completamente confortável em seu assento humano, ao que balançava suas perninhas e cantarolava, totalmente alheia ao clima estranho que estava crescendo no cômodo. A tensão parecia aumentar gradativamente, e, a cada segundo ao que a bruxa hesitava em falar algo, maior a energia ansiosa que rodeava a lobisomem ficava. O que, em troca, parecia deixar a Matsubara ainda mais indecisa.
— Fueee…!
Foi praticamente impossível não deixar um sorriso desengonçado dominar os seus lábios ao escutar aquele som. Ela sentiu seus ombros, antes rígidos, relaxarem — assim como o seu rabo, que não demorou a abanar lentamente com a reação habitual da outra.
A Okusawa coçou uma de suas orelhas lupinas com a garra em sua unha, tentando aliviar a coceira incômoda que sentia ali. Ela viu como a familiar de Kanon também percebeu o barulho, já que Kokoro virou sua pequena cabeça para a humana em alegre confusão. O que quer que a fae tenha dito para a bruxa havia a ajudado a se acalmar o suficiente para que um brilho determinado aparecesse em seu olhar.
— Misaki-chan…! — A Matsubara a chamou novamente, embora não fosse necessário. A lobisomem já estava prestando atenção nela, afinal. — Você quer ajuda com a sua transformação dessa lua cheia?
Seus olhos se arregalaram por uns segundos, antes da Okusawa desviar suas íris da outra. Ela ignorou a forma como seu coração apertou-se a simples menção do seu problema. Não estava fugindo do assunto, era apenas mais fácil pensar naquela situação quando estivesse olhando para a madeira da escrivaninha à sua esquerda — pelo menos, era o que estava se fazendo acreditar naquele momento.
A situação de meio-lobo dela não era… normal. Ainda que nascida numa matilha de lobisomens, Misaki sempre teve uma certa dificuldade de virar completamente algum ser. Ela não sabia o porquê, porém nem mesmo às noites de lua cheia conseguiam ajudá-la a se transformar num lobo por mais de alguns minutos.
Parecia até que seu lado animal estava renegando-a. Algo que não fazia sentido, visto que algumas de suas características lupinas continuavam presentes em sua forma física atual. Isso não descartava a ideia de que a jovem tinha um bloqueio, porém.
Qual tipo ele era, a Okusawa já não sabia dizer.
— Kanon-san… — A lobisomem mais suspirou do que falou, parecendo resignada com sua situação triste e estagnada.
Seus dedos brincavam com os pêlos castanhos escuros de seu rabo, que agora se encontrava curvado protetivamente em seu quadril. Depois de anos tentando, era difícil achar um raio de esperança dentro do seu peito. Gostava de pensar que já havia aceitado o seu destino, por mais infeliz e insatisfatório que ele fosse.
Ainda assim, Misaki tinha problemas em negar a bruxa na maioria das vezes.
O brilho decidido nas íris ametistas não ajudavam-na a formar as palavras necessárias para declinar o pedido alheio. Tentando extravasar um pouco da tensão que sentia, ela mordeu o lábio inferior, hesitante.
— 'Cê sabe que não precisa se preocupar com isso, né? — Ela argumentou, ainda que sua voz soasse fraca aos seus próprios ouvidos. Pela postura e expressão da Matsubara, era óbvio que ela já havia decidido o que fazer independente de sua resposta.
— É difícil não se preocupar quando você se sente mal, Misaki-chan — A voz doce e suave de Kanon trazia um tom triste, parecendo partilhar da dor que a lobisomem raramente deixava à vista de outras pessoas.
Parece que ela não escondia o que sentia tão bem quanto achava.
O peso da mão da humana em seu ombro a lembrou de que não estava mais sozinha. Era um pequeno conforto, embora ainda tivesse dificuldade de aceitar aquele fato. Por mais que soubesse que não precisava mais carregar o peso de suas preocupações sozinha, quebrar velhos hábitos não era fácil.
Sentindo-se desconfortável com tamanha atenção em si — até mesmo o olhar ingênuo e curioso de Kokoro estava a incomodando, mais do que o normal pelo menos —, a Okusawa voltou suas íris acinzentadas em direção a janela de madeira.
As nuvens se moviam tão devagar lá no céu, descobrindo a lua de forma gradativa, libertando a sua luz prateada para iluminar amenamente a grama e as árvores dali de fora. Ainda que de forma tênue, Misaki conseguia sentir o efeito dela em si. Sua pele formigava superficialmente, indicando que seria mais fácil de se transformar em sua outra forma.
Era como se seu lobo quisesse sair naquele exato momento. Ele desejava, mais do que qualquer coisa, a liberdade de poder correr pela floresta que rodeava a casa de Kanon.
E, infelizmente, tanto ela quanto seu animal interior sabiam que aquilo não seria possível sem uma ajudinha extra.
— Bom, por que não tentar tomar uma poção? — A lobisomem questionou, soando mais desanimada do que esperançosa. — Pode ser que a gente finalmente descubra alguma resposta para o meu problema.
Provavelmente ela mudasse de ideia no futuro, no entanto, ver os lábios de Kanon florescendo em um sorriso — daqueles que fazia com que ruguinhas aparecessem nos cantos dos olhos dela, exalando pura felicidade e animação, assim como não falhando em fazer seu coração falhar uma batida antes de recomeçar a pulsar mais forte — a fez pensar que talvez acabar não achando uma solução para seu bloqueio não fosse tão ruim assim.
Não se pudesse ver aquele tipo de expressão no rosto da sua bruxinha favorita.