Work Text:
O som das engrenagens desgastadas ressoava pelo cômodo de madeira, sendo uma melodia constante pelo local. O cheiro de graxa e de tinta era forte, mascarando qualquer outro que pudesse existir pelo ambiente. Apesar disso, o pequeno quarto era aconchegante.
Ou talvez sua percepção estivesse deveras influenciada, já que tinha um romance com uma inventora — que inclusive era a dona do lugar caótico. Também era provável que seus padrões baixos tivessem um dedo na questão; afinal, Uraraka era uma ladra e, sendo uma criminosa relativamente famosa, não poderia se dar o luxo de ser seletiva.
(A partir do momento em que não pagava aluguel, aquele local virou a melhor residência em que já havia ficado. Além disso, ela não só dormia num colchão super macio como também tinha água quente disponível vinte e quatro horas para tomar banho.
E se Hatsume só pedia metade do preço pelos consertos de seus equipamentos, era devido ao fato de que não só cozinhava para ela como também trazia alguns materiais que sua amada precisava. Uma belíssima parceria a que tinham, se a Ochako pudesse opinar.)
— Mei, minha cara, já está acabando com esse seu bebê? — Uraraka questionou suavemente ao que deslizava suas mãos pelos ombros alheios. Ela apoiou seu queixo em cima dos dreads rosados da inventora, observando como os dedos engraxados ajeitavam as engrenagens de uma placa.
— Hmm?
Os cantos dos lábios da ladra se curvaram num sorriso carinhoso diante do som questionador de Hatsume. Era nítido que o foco dela estava completamente no projeto que estava montando, embora ainda estivesse atenta o suficiente para reconhecer que sua amada tinha dito algo para si.
A posição que a Ochako estava não a deixava observar a expressão que a inventora tinha, todavia isso não a impedia de imaginar. Inclinando o rosto no cabelo alheio, ela esfregou carinhosamente sua bochecha na cabeça da outra.
Ao que suas pálpebras fechavam, conseguia visualizar sem dificuldade a forma como as irises amarelas esverdeadas teriam um brilho peculiar; o jeito que o nariz da inventora se iria franzir ora ou outra assim como o aleatório erguer de sobrancelhas que Mei fazia quando sua invenção parecia não estar funcionando como ela esperava. Isso a deixava… Tão fofa…
Sentindo o coração apertar de afeto por sua amada, Uraraka suspirou apaixonadamente. Não aguentando mais ficar apenas na escuridão com suas fantasias, a jovem retornou a abrir suas pálpebras. Sua visão logo foi parar na mesa de Hatsume, observando as peças metálicas e as ferramentas desgastadas espalhadas pela madeira.
Ainda que não fosse a sua vista favorita, era uma que sentiria falta. Sabendo que sua covardice não seria apreciada — e que já tinha gastado tempo demais enrolando para contar as novidades para a outra, ela inspirou fundo e apertou um pouco o seu embraço sobre os ombros alheios.
— Mei, não vou poder ficar muito tempo — A ladra murmurou, desejando ser ignorada naquele momento, aproveitando dos barulhos que dominavam o ambiente e do foco intenso da outra. — Recebi uma proposta para furtar uma relíquia da casa dos Todoroki… já me pagaram metade do valor e receberei o resto quando terminar o serviço.
Ao contrário do que esperava, a inventora escutou-a muito bem. Lentamente, o som da engrenagem sendo ajustada foi diminuindo até parar por completo. O silêncio, porém, era impossível de ser ganho naquele cômodo — apesar de ainda ouvir o tique-taque e creck-creck de algumas das invenções funcionais, a falta de outra melodia junto foi tão pesada quanto uma ausência total desta.
— Mei…?
— Quanto tempo? — A voz levemente grave da Hatsume interrompeu a sua tentativa de formular uma frase. Ela não tentou sair do enlace da Ochako tampouco se aconchegou nele. A falta de uma reação mais intensa de sua amada fez com que a jovem mordesse o lábio inferior. — Por quanto tempo vai me deixar dessa vez?
O jeito direto dela às vezes chegava a ser brutal. Uraraka engoliu a saliva que acumulou em sua boca com certa dificuldade; o aperto no peito que sentia agora era doloroso e incômodo. Se não fosse pelo fato de que precisava do dinheiro, talvez ela não ficasse tanto tempo sem ver a inventora.
— É só por alguns meses — Ela sentiu os ombros que segurava tensionando, todavia Mei continuou calada. Inquieta, a ladra continuou a tentar se explicar. — Vai demorar até eu conseguir me infiltrar na mansão e ter livre acesso a maior parte dos cômodos… você sabe como é o esquema.
Afinal, não era a primeira vez que a Ochako faria um trabalho daquele tipo. (E talvez fosse justamente esse o problema. Por mais auto suficiente e centrada em si a inventora fosse, Hatsume gostava de ter sua companhia e tinha sido a primeira a aprofundar o relacionamento delas.
Era visível que, do seu jeito, ela se importava e apreciava consigo. Estavam juntas, numa parceria que se estendia além do trabalho, e não era preciso ser muito observador para perceber que a outra não parecia satisfeita com o que iria acontecer. Ainda assim, Mei nunca a pedia para ficar. Se era por respeito ou por achar desnecessário o fazer, Uraraka não sabia.)
— Também ouvi falar que as empregadas na mansão Todoroki recebem duas folgas ao mês — Ela continuou a falar, não querendo deixar o pseudo-silêncio dominar o ambiente. — Eu posso usar elas pra vir te visitar, já que é apenas uma viagem de trem de lá até aqui.
Uma volta na engrenagem. Mais uma volta, com a intenção de ajustar a peça dentro do sistema na placa.
— Quais dos seus equipamentos preciso conferir antes de você ir? — O tom da inventora era indiferente, mesmo contendo um pequeno timbre desagradado. A Ochako suspirou tristonha, e retirou sua cabeça dos dreads rosados.
— Talvez minhas botas? Nunca lembro qual é a que vaza óleo quando está ativada — A ladra respondeu, não escondendo sua frustração. — Ah, e o meu arpéu emperrou de novo.
A Hatsume fez um som confirmativo, mostrando que ainda estava ouvindo. Uraraka não duvidava que apenas metade da atenção dela estivesse na conversa. Aproveitando que continuava sendo escutada, ela perguntou:
— Quanto de pólvora você ainda tem, minha cara?
Mei largou a chave de fenda que usava na mesa, assentindo para si própria. Ela pôs o sistema para rodar, adicionando mais uma música de engrenagens movimentando a harmonia caótica do cômodo.
— Talvez uns vinte, trinta quilos. Por quê?
Um pequeno sorriso ergueu os cantos dos lábios da ladra.
— O nosso adorável amigo Dynamight tava oferecendo uns metais em troca de pólvora — A Ochako comentou, soando travessa. A inventora tencionou antes de virar o rosto em sua direção, irises amarelas esverdeadas analisando semelhantes castanhas.
— Alumínio?
Uraraka assentiu, ainda com uma expressão ardilosa no rosto.
— Alumínio.
A Hatsume arfou, surpresa. Seus olhos ficaram enevoados, provavelmente porque calculava mentalmente o quanto de seu material poderia trocar para ter em mãos o precioso metal. A oferta de Bakugou era muito boa, e só não tinha aceitado na hora porque não sabia se sua amada tinha o necessário para poder aceitar a compra.
(Como Deku não estava tentando parar o outro de vender o alumínio, a ladra não sabia. Suspeitava que aquilo era uma opção por eles terem mais do que precisavam; sendo ambos viajantes de barcos voadores, não deveria ser difícil de conseguir o metal que era escasso por aquela área.)
— Eu aceito o seu suborno — Mei falou, deixando um sorriso animado alargar os seus lábios numa expressão extasiada. A Ochako sentiu um calor surgir em suas bochechas, a fazendo desviar o olhar da outra.
— Então amanhã eu falo com ele e trago o seu alumínio, minha cara.
O grito animado de Hatsume machucou brevemente os tímpanos de Uraraka, todavia ver a expressão feliz no rosto alheio era algo que valia mais do que o dinheiro que ganhava. O jeito como as ruguinhas apareciam nos cantos dos olhos da inventora era adorável, assim como o brilho que dominava as suas irises.
As batidas do coração da ladra deram um pequeno salto na altura, de forma que ela conseguia ouvir as pulsações no seu pescoço. Ignorando a forma como sua amada conseguia tirar seu fôlego e não conseguindo resistir a tentação, ela aproximou-se da face da outra devagarinho. Sem hesitação, seus lábios se selaram suavemente com os de Mei, com a intenção de dar um breve beijo.
Hatsume, porém, não perdeu tempo em raspar a língua pela sua boca e aprofundá-lo. O ato surpreendeu a Ochako no momento, embora não tivesse a feito paralisar — ela retribuiu o empenho no carinho que era lhe dado, mesmo que a intensidade e paixão estivessem num nível diferente do que tinha proposto.
Quando se separaram, o brilho peculiar (ainda que muito familiar para si) da inventora a distraiu. Tendo tido o ar roubado, literalmente, pela sua amada, a ladra demorou um pouco para recobrar a sanidade.
— Da onde… veio isso? — Uraraka questionou, soando avoada. O rubor que dominava suas bochechas, todavia, deixava na cara que não tinha sido contrária a devoção do beijo.
Os cantos dos lábios de Mei se ergueram de um jeito que só dava para se denominar de lascivo. Um pequeno arrepio passou pelo seu corpo; aquele tipo de sorriso a outra só guardava para dois momentos, e um deles era pra quando queria testar uma invenção perigosa em humanos.
Já no outro…
— Você vai embora logo, não? — A Hatsume questionou, agora com um pano em mãos (provavelmente era aquele que sempre ficava em cima da mesa, o qual já estava manchado de preto de tanto que era usado) que passava por entre os dedos. — Ao invés de perdemos tempo, poderíamos aproveitar ele enquanto ainda está aqui.
A Ochako assentiu, ao que o calor se alastrava pelo seu corpo. Ela sentiu a pele de sua amada quando a outra agarrou a sua blusa e a puxou para mais perto, fazendo com que tivesse de usar sua mão mais perto da mesa para se estabilizar.
— Tenho algumas teorias que adoraria testar em você.
E foi exatamente o que a Mei fez, pouco depois de lhe dar mais um beijo apaixonado. Ela a levou até a cama que ficava no canto, e, minuciosamente, analisou e armazenou dados sobre o corpo de Uraraka. Mesmo que ainda tivessem mais alguns dias antes dela partir, é quase impossível prever o resultado de um trabalho.
Por isso, não era estranho que tivessem passado a maior parte do tempo se amando. Era por esse detalhe que a ladra enrolou tanto para falar da oferta que tinha aceitado: você nunca sabe quando será a última vez que verá sua amada. Logo, a única opção que restava era a de aproveitar os momentos que ainda tinham juntas. Algo que ninguém poderia dizer que não fizeram, mesmo que o som das engrenagens fosse um ótimo abafador de som.
