Chapter Text
Ela era uma daquelas pessoas comuns que normalmente não era lá muito bem vista pela sociedade, embora ainda assim fosse apenas mais humana como qualquer outra. Ela estudava, via filmes e séries, limpava a casa e fazia sua comida.
Não tinha nada de muito diferente dos outros cidadãos, ainda que muitos fossem querer dizer o contrário.
Ela adorava a rotina que havia criado — mesmo que às vezes a achasse super entediante — e gostava da vida pacata que tinha. Mesmo que não soubesse muito bem o que faria dali a dez anos ou que não tivesse muitos planos para o futuro, a jovem adorava estar viva, problemas à parte.
Logo, quando acabou sofrendo um acidente e morreu, ela sentiu-se frustrada. Não porque não estava mais respirando ou porque não existia mais. Era triste saber que não poderia mais respirar e que não teria mais contato com colegas e pessoas próximas, só que talvez a ficha dela ainda não tivesse caído, porque a dor que sentia no peito não era por causa disso.
E sim porque ainda não tinha lido o final da sua trilogia favorita.
Ela não iria mais saber o final da protagonista. Não saberia mais se a antagonista teria sua redenção ou se ela seria derrotada — e o que aconteceria com o ser que ela invocou? Voltaria para o mundo dele? Ou faria contrato com alguém que buscasse vingança contra a protagonista, abrindo assim um gancho para uma nova série?
Ela não iria mais saber agora. E esse conhecimento — ou talvez a falta dele? — estava a deixando angustiada.
Para a surpresa dela, todavia, ela não permaneceu morta por muito tempo. Foi… estranho. Era como se no pequeno tempo em que a jovem estivesse sem vida, na verdade ela estivesse inconsciente. Só que, bem, sem a parte de respirar.
Algo que, agora, ela estava conseguindo fazer. Conseguia sentir o ar entrando novamente em seus pulmões a cada inspiração que dava. Era estranhamente reconfortante. Alguma coisa estava diferente, e ela não fazia ideia do que era.
Com um pouco de dificuldade, a jovem consegue abrir os olhos. Ela não se sente exausta. Seus músculos estão relaxados e embora suas pálpebras ainda estejam querendo manter-se fechadas, não sentia um pingo de sono em sua pessoa.
O que não fazia sentido para ela. Não deveria se sentir cansada? Afinal, ela morreu — mesmo que brevemente. Se não fosse por isso, deveria ser pelas noites mal dormidas ou por trabalhos atrasados ou por maratonar séries e animações.
Ela levou a mão até a cabeça, passando os dedos pelos seus fios de cabelo. Estranhou um pouco a sensação rala e macia que eles tinham, afinal, não tinha o costume de cuidar muito bem deles. Ainda assim, tudo o que fez foi erguer os ombros num sentido de tanto faz.
Ela se sentou na cama com um pouco de dificuldade, e, ao olhar o local em volta, franziu as sobrancelhas.
— Mas que caralhos…? — No momento em que ouviu a voz, suas mãos taparam seus lábios e seus olhos se arregalaram.
Aquele timbre não era seu. Tinha certeza disso. Assim como o quarto em que estava também não a pertencer, uma vez que uma jovem universitária não tem condições de comprar um cômodo tão grande.
E a decoração também não indicava que ela estava sequer na era moderna. Além de toda a mobília ser feita majoritariamente de madeira e ferro; ela não via um fio, um aparelho tecnológico, um celular, nada.
Ao invés disso ela conseguia ver livros, potes com algumas plantas e objetos não identificados e até mesmo um caldeirão mais pro fundo do cômodo.
Confusa, ela tirou os lençóis de cima de si e se rastejou até a ponta do colchão. A cama era praticamente uma king size de tão grande — não que ela tivesse sequer chegado a deitar uma antes.
A jovem pôs seus pés para fora da cama e se levantou. Dando mais uma observada em volta de si, ela reparou no espelho que estava virado na direção de uma das portas do cômodo.
Curiosa, a jovem resolveu ir até ele. A cada passo que dava ela sentia as batidas do seu coração se acelerarem. Temia e suspeitava o que iria ver, porém não queria criar expectativas. Conforme ela se aproximava, sua figura ficava cada vez mais clara na superfície de vidro.
Os fios negros de pontas esverdeadas, as mãos pequenas e o corpo franzino — embora a roupa que usava até que escondesse bem esse fato. A camisa perolada era bem larga, bem no estilo daquelas que normalmente as pessoas achavam que piratas usavam. Já a calça preta, sendo um pouco mais justa porém não apertada, era de um tecido fino e leve.
Suas íris, tão atentas a cada detalhe, tinham um tom esverdeado néon e sua pele era um bege escuro — aquela típica cor de um café com leite.
Com um ofego, ela teve certeza.
Não era mais a jovem universitária fudida que vivia num mundo humano sem magia ou seres fantasiosos.
Não, agora ela estava no corpo de Yu Takasaki, a antagonista da sua série de livros favorita.
[—]
Após ter se beliscado umas três vezes e ter tomado um banho — apenas para verificar se ia sentir o toque da água em sua pele ou reconhecer o cheiro do sabonete —, ela se vestiu e voltou novamente à frente do espelho.
Ela, agora se chamando Yu, não conseguia acreditar no que estava vendo.
Sua pequena mente não compreendia os comos ou porquês dela estar ali, viva, em outro mundo e num corpo que não era seu.
E ainda assim, ela sentia a respiração começar a acelerar, fazendo com que o peito refletido no espelho começasse a subir e descer de forma cada vez mais rápida. Observava no vidro as lágrimas acumularem nos olhos esverdeados até a sua visão ficar turva e sentir que o chão magicamente foi tirado de seus pés.
Ela não conseguia ver. Não sabia se o que tocava era real ou não, muito menos se sequer estava usando suas próprias mãos para isso.
A confusão estava deixando sua cabeça pesada e letárgica. Ela não sabia se era invenção sua ou se realmente estava escutando uma voz relativamente parecida com a sua falando em sua mente. As palavras soavam destoadas e confusas, e mesmo assim, ela sabia vagamente que o que era dito era algo sobre um ataque de pânico.
[—]
Quando Yu abriu as pálpebras novamente, a primeira coisa que percebeu era que sentia-se cansada. Sentia seus músculos doendo, provavelmente por estarem tão tensos, e uma leve dor latejava em sua testa.
Com um suspiro insatisfeito, ela tentou mexer alguma parte do corpo. Sentia seus dedos das mãos se flexionando, e, com um pouco de esforço, conseguiu virar o corpo para se pôr deitada de costas no chão.
Seus olhos observaram o teto sem realmente o ver. Yu não se recordava exatamente como havia parado no chão ou o porquê sentia-se tão cansada.
Virando a cabeça para o lado, suas íris verdes acabaram trombando com o reflexo do espelho. Foi com um arregalar de olhos que Yu lembrou o que tinha ocorrido.
Havia tido um ataque de pânico ao perceber que não estava mais em seu mundo e agora possuía o corpo de alguém que deveria ser um personagem fictício.
Ao perceber que novamente estava ficando sem ar, Yu fechou os olhos e inspirou profundamente. Conforme o ar entrava e saia em seus pulmões, ela ia se acalmando.
Ela pôs as mãos no rosto. Sentir a pele macia em si mesma lhe deixava entre assustada e reconfortada. Aquele toque não era seu, ao mesmo tempo conseguia senti-lo.
Ela não tinha ideia de quanto tempo esteve naquela posição, todavia, assim que sentiu-se mais tranquila, ela resolveu se levantar. Com a ajuda de seus braços e ignorando o reflexo no espelho, ela ergueu o tronco até estar sentada.
A primeira coisa que reparou foram seus pés, que estavam desnudos. Ao movimentar os dedos, ela compreendeu que não tinha mais o que surtar sobre — aquele era seu novo corpo.
Ela encolheu as pernas e colocou a mão no chão, sentido a madeira fria sob sua pele com o contato direto. Usando da palma ela se ergueu e levantou do chão com um pouco de dificuldade.
Meio aérea, ela caminhou até a cadeira mais próxima e sentou-se ali. Por sua sorte, era de costas ao espelho, então poderia ignorar seu reflexo enquanto assimilava as informações.
Seu nome agora era Yu Takasaki. Ela tinha entre dezenove a vinte e três anos, afinal, sua idade nem a da protagonista tinha sido explicitamente dita nos livros. A única coisa que era dita sobre era que já estavam na maioridade e tinham idades aproximadas.
Ela tinha alguma rixa com a protagonista que nunca foi contada nas histórias. Yu nunca chegou a contar qual era o problema dela com a outra mulher, e a principal sempre teve um certo receio de conversar sobre o assunto com seus novas companheiras de guilda.
Ela suspirou, frustrada. Se fosse para continuar fingindo ser a Yu da história, obviamente não iria conseguir realizar tal feito. Ela não sabia muito sobre a personagem, em parte por culpa da própria escritora que havia negado dar qualquer informação sobre a antagonista.
Ao apoiar a cabeça na mesa, talvez com um pouco de força além do necessário, Yu acabou batendo a testa na capa dura do livro que estava ali.
A Takasaki ergueu o rosto enquanto massageava a área machucada. Ao ver a capa negra e os símbolos desconhecidos, ela teve certeza que sabia exatamente sobre o assunto que continha nele.
Levemente curiosa, Yu resolveu dar uma olhadinha. Não faria mal ter certeza né? Afinal, independente de estar aceitando ou não sua nova situação, aquele livro era, de certa forma, seu.
Logo, não teria nenhum problema ela ver algo que a pertencia.
Assim que abriu o livro numa página qualquer, a primeira coisa que ela percebeu era que a linguagem do livro era uma diferente da que ela estava acostumada. Para sua sorte, parecia que nem a própria personagem conhecia aquela língua, já que tinha anotações pelos cantos da folha em um idioma que ela reconhecia.
Grande escritora por ter deixado a língua materna como a oficial daquele mundo! Yu sofreria muito menos para se adequar no lugar por ter acesso a informação acessível.
Ela deu uma lida nos textos, interessada nos tipos de demônios e rituais para invocá-los. Supostamente eles viviam em uma parte banida daquele mundo e só poderiam atravessar uma barreira de proteção se alguém com magia fizesse um contrato com eles.
A Takasaki se lembrava que a antagonista tinha feito um ritual para chamar um demônio para ferrar com os objetivos da protagonista. Havia dado errado, porém, já que ele logo foi capturado e forçado a quebrar o trato entre ambos.
Tinha sido uma cena triste. Yu havia se apaixonado pela personagem, que além de bonita e ardilosa, tinha um coração dourado. A Nana realmente era um demônio cativante…
Ela mordeu os lábios, pensativa. Não seria prudente, mas e se, por algum acaso… E se ela tentasse fazer o ritual, só por curiosidade?
As batidas cardíacas da Yu aceleraram só de pensar na mera possibilidade. Deveria tentar fazer algo por um motivo tão besta? Não daria problema fazer algo assim?
Sua mente deu estalo.
Por que ela estava se importando com as regras? A original Yu simplesmente fez um ritual para estragar a vida de uma pessoa. Por que ela não poderia invocar um só para saber como é?
Decidida, a nova Takasaki começou a se preparar para seu objetivo. Era algo doido, era excitante e animador, era incerto porém era tudo o que ela mais desejava fazer naquele momento em que se viu como antagonista.
Ela iria tentar invocar um demônio.